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13 Dezembro 2021

Se por acaso esse é o motivo, eu também irei presa

Por Carla V. Barbosa and Ivi Oliveira
 
Me mandaron una carta
Por el correo temprano
Y en esa carta me dicen
Que cayó preso mi hermano
[...]
Yo que me encuentro tan lejos
Esperando una noticia
Me viene a decir la carta
Que en mi patria no hay justicia
Los hambrientos piden pan
Plomo les da la milicia, si
[...]
Si acaso esto es un motivo
Presa también voy sargento,sí
1
 

Quando se viaja para encontrar o defensor de direitos humanos José Vargas, é impossível não prestar atenção especial no caminho. O aeroporto mais próximo fica a 350 km de sua casa em Redenção, passando pela estrada que é palco dos dois maiores massacres de trabalhadores rurais e defensores dos direitos da terra dos últimos 25 anos no Brasil. No Massacre de Carajás, em 1996, a polícia militar matou 19 pessoas marchando rumo à capital do estado; no Massacre de Pau D'Arco, em 2017, as polícias civil e militar assassinaram 10 pessoas que ocupavam um pedaço de terra.

A região sul e sudeste do Pará, outrora coberta pela floresta amazônica, é uma das principais fronteiras agrícolas do Brasil – e não por coincidência uma das regiões mais perigosas do continente em termos de conflitos agrários, onde o agronegócio avança desinibido sobre corpos de trabalhadores rurais.

É neste contexto que nosso amigo José Vargas trabalha. Ele é professor e advogado de direitos humanos, cuja coragem inspira espanto e admiração. Vargas tem desempenhado um papel destacado em alguns dos mais emblemáticos casos de direitos humanos no Brasil, e atualmente é um dos advogados na constante luta pela justiça para o Massacre de Pau D'Arco. Ele é também conhecido por suas brilhantes análises políticas, senso de humor irônico, sensibilidade às causas sociais, excelente gosto musical, sendo um leitor ávido - e seu amor radiante por suas duas filhas.

Apesar de conhecer José Vargas desde 2017, a última vez que o visitamos foi um pouco diferente. Não apenas porque não pudemos nos encontrar por algum tempo devido à COVID-19, mas porque desta vez, José Vargas estava em prisão domiciliar.

 

Mas não se preocupe meu amigo
Com os horrores que eu lhe digo
Isso é somente uma canção
A vida realmente é diferente
Quer dizer
Ao vivo é muito pior1

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Era meio-dia de um sábado, 02 de janeiro de 2021, quando recebemos a notícia: prenderam o Vargas. Ele foi preso em 1º de janeiro de 2021, enquanto comemorava o Ano Novo em casa com sua esposa e duas filhas, acusado de envolvimento no desaparecimento de um político local em outubro de 2020. Vargas já havia enfrentado retaliação de seu trabalho antes, o que levou à sua inclusão no Programa de Proteção Estatal para Defensores de Direitos Humanos, bem como à saída temporária de Redenção com sua família alguns anos atrás. Entretanto, e nas próprias palavras de José Vargas "confesso que poderia até ter temido possíveis abusos e arbitrariedades do Estado, mas nunca imaginei que poderia ser acusado de um crime tão bárbaro". Muitos no movimento vêem a prisão de José Vargas como uma clara tentativa de impedir a justiça para as vítimas e sobreviventes do Massacre de Pau D'Arco.

No mundo todo, a Front Line Defenders tem documentado o aumento do uso indevido do sistema judicial para silenciar os defensores de direitos humanos, aprisionando-os, destruindo sua reputação e interrompendo seu trabalho. Para Vargas, procedimentos jurídicos e prerrogativas profissionais têm sido ignorados. Até hoje, ele e seu advogado continuam impedidos de ter acesso a seu telefone celular e computador de trabalho, que contêm provas fundamentais para sustentar sua inocência.

Mais de 11 meses se passaram desde que Vargas foi preso. Desde 25 de janeiro, o defensor dos direitos humanos está sob prisão domiciliar. Em 13 de dezembro de 2021, enquanto terminávamos de escrever este texto, recebemos a notícia de que a juíza assistente da vara criminal decidiu manter sua prisão domiciliar por pelo menos mais três meses e meio, agendando uma audiência sobre o caso apenas para o dia 25 de março de 2022.

Hoje, 14 de dezembro, é o aniversário de José Vargas. É difícil acreditar que os policiais do Massacre de Pau D'Arco estejam livres e em atividade, e que José Vargas não esteja. Vargas é um advogado necessário em uma Amazônia sob ataque, em um país onde todas as estruturas democráticas estão sendo desmanteladas. Todo mundo sabe que a prisão de José Vargas é injusta. Ele deveria estar comemorando com amigos e familiares, retomando os preparativos para a viagem que havia planejado janeiro passado com sua família. Nós continuaremos lutando por sua liberdade.

Querido Vargas, estamos com você. Feliz aniversário à distância.

 

"Acho que não temos outra alternativa a não ser permanecer otimistas. O otimismo é uma necessidade absoluta, mesmo que seja apenas otimismo da vontade, como disse Gramsci, e pessimismo da razão".

- Angela Y. Davis, A Liberdade é uma Luta Constante

 

1Trecho da música “La Carta” de Violeta Parra. “Me enviaram uma carta/ Por correio esta manhã/ E nessa carta eles dizem/ Que foi preso o meu irmão […] / Estou tão longe / À espera de notícias / A carta me diz /Que em minha pátria não há justiça / Os famintos pedem pão A milícia lhes dá chumbo, sim […] / Se por acaso esse é um motivo/ Eu também irei presa, sargento, sim”

2Trecho da música Rapaz Latinoamericano” de Belchior.